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Mértola: viagem à beira-rio pelos caminhos do Alentejo islâmico

Mértola: viagem à beira-rio pelos caminhos do Alentejo islâmico

“As Minas de São Domingos e cascata do Pulo do Lobo colocaram-na no mapa, mas esta terra alentejana tem muito mais para visitar, sendo palco de uma mais ricas heranças históricas do Alentejo. Entre vestígios romanos e árabes vivem-se outros tempos. E dorme-se a olhar as estrelas.

Até há mais de 40 anos, todo o museu que hoje se percorre num passadiço ao ar livre no circuito de visitas da Alcáçova do Castelo de Mértola era um imenso arrabalde abandonado onde as crianças brincavam entre figueiras. Sem saber, corriam por cima de preciosos cacos de peças islâmicas e romanas e foi a observá-los, enquanto entravam e saíam de uns túneis no chão, que Cláudio Torres, fundador do Museu de Mértola, descobriu aquele que viria a ser o epicentro do Campo Arqueológico de Mértola, conta o guia local Nuno Roxo.

Os trabalhos, iniciados em 1978, revelaram que os supostos túneis onde as crianças se aventuravam davam acesso, afinal, a uma cisterna islâmica aproveitada de uma construção romana, enterrada pelo tempo. Removendo sepultura atrás de sepultura, descobriram-se também através das escavações uma densa necrópole da Baixa Idade Média, casas islâmicas dos séculos XII e XIII e um baptistério do século VI (dos mais importantes encontrados no Mediterrânico), rodeado de mosaicos com figuras de animais e cenas de caça.

O arqueólogo Cláudio Torres foi o grande impulsionador da preservação de Mértola.

Este circuito pelos vestígios do Bairro Islâmico é só uma amostra do que a famosa “vila-museu” alentejana tem para oferecer a quem a visita, e deve-se ao seu grande impulsionador Cláudio Torres, arqueólogo e investigador, hoje com 80 anos. Muitos dos vestígios arqueológicos ali encontrados durante mais de três décadas de escavações seguiram para os vários núcleos do museu municipal, dispersos pelo casco antigo da vila. Quem os quiser ver e compreender à luz da herança islâmica do território tem, por isso, de palmilhar várias ruas, sendo o núcleo da arte islâmica um dos mais interessantes a visitar, pois tem a maior coleção de cerâmica de luxo islâmica existente no país.

A Igreja Matriz de Mértola. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

A meio caminho para o castelo encontra-se a Igreja Matriz, “a única mesquita em Portugal a funcionar como igreja” católica. “Foi sempre um espaço de culto religioso, independentemente de quem o praticou”, diz o guia Nuno Roxo. Datada do século XII, surge como testemunha da permanência dos muçulmanos, que tornaram Mértola capital de um pequeno emirado islâmico independente. A conquista de Mértola para o reino português deu-se no reinado de D. Sancho II, graças aos cavaleiros da Ordem de Santiago, e a porta islâmica foi substituída por outra manuelina, assim como a torre de chamamento para a reza transformada numa torre de sinos.

castelo, erguido pelos almóadas a partir de estruturas muito antigas, dificultou a conquista do território. Após inúmeras campanhas de requalificação, chegou aos nossos dias com o estatuto de sede nacional da Ordem de Santiago até 1316 e de monumento nacional. Visitando-o, dá para aceder à praça de armas e à imponente torre de menagem, com 30 metros de altura, onde funciona também um núcleo museológico com vestígios da época pré-islâmica que atestam a presença de outros povos, como os visigodos, no território.

Caminhando pelas estreitas e acidentadas ruas da vila facilmente se chega ao posto de turismo de Mértola, morada também da Casa de Mértola, um pequeno museu que replica as casas alentejanas de inícios do século XX que chegaram até aos dias de hoje. Ao contrário do que acontecia nas casas de maiores áreas do bairro islâmico da Alcáçova, aqui as habitações tinham por norma apenas cozinha e quarto, apesar de nelas viverem famílias numerosas, ligadas à pesca e à agricultura.

De características bem diferentes é a casa onde Nadia Anghel, de 38 anos, e a mãe abriram o restaurante Terra Utópica, há quatro anos. O edifício primeiro assemelha-se a uma casa tipicamente alentejana, de paredes grossas e com muitas divisões, mas depois percebe-se que foi decorado com elementos de inspiração marroquina e de outros países.

A suíte do alojamento local Casa da Ti Amália. (Fotografia de (Reinaldo Rodrigues/GI)

Na ementa, Nadia apostou em pratos mediterrânicos (feitos pela mãe), como peito de frango com arroz de legumes e posta de novilho alentejano, e nos vinhos Herdade da Bombeira, feitos na região. A sobremesa pode ser saboreada numa varanda com vista privilegiada para as margens do Guadiana e para a ponte moderna que une as margens entre Mértola e a aldeia de Além-Rio.

Até pelo menos meados dos anos 1960, o transporte de viaturas, mercadorias e pessoas entre as margens fazia-se através de uma ponte-barca, nada mais que uma barcaça de aspeto rudimentar, que mais tarde se afundou.

Ficaram os vestígios dos locais de amarração e um pedaço de estrada usado, hoje, para acesso de canoas e pequenos barcos ao rio. Quem o conta é Nelson Margarida, dono de vários negócios em Mértola, um deles o bed & breakfast Casa da Tia Amália, aberto há seis anos na margem esquerda, em Além-Rio.

O Café Guadiana é um dos mais antigos e emblemáticos da vila. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

A casa, na verdade, era uma antiga estalagem e foi inteiramente recuperada com seis quartos distribuídos por dois pisos e uma decoração de traços alentejanos e mouriscos, a cargo da sua mulher, Marta Cruz. Nos quartos da segunda casa – o Espaço Casa Amarela -, em cima do rio, o estilo de alojamento é o mesmo, mas a vista é completamente diferente, perfilada que surge, na muralha, toda a vila de Mértola. Já à noite, sob o céu estrelado que só se vê no Alentejo, vale a pena jantar no restaurante de cozinha regional e mediterrânica. Por baixo, nos meses de verão, funciona um bar de tapas e fazem-se sessões de música ao vivo.

Nelson sabe bem como casar o tradicional e o contemporâneo, ou não fosse ele responsável, também, pelo histórico Café Guadiana, encaixado há mais de cem anos numa muralha, no principal largo da vila. “Foi o primeiro café a ter uma televisão” naquelas bandas, conta, e que depois de alguns anos sem rumo voltou a recuperar movimento, agora com uma oferta mais virada para os turistas, à base de petiscos portugueses, e fazendo-se valer de uma agradável esplanada. Dali, parte-se à descoberta desta vila sem igual, lugar de uma das mais complexas heranças históricas e culturais do Alentejo.

A Mercearia Souk. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)
Oficina de Ourivesaria (Nádia Torres) (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Uma mercearia souk e joalharia de autor

Cervejas artesanais e vinhos da região, compotas, licores, queijos, enchidos, frutos secos, flor de sal, conservas, marmelada, folar de massa pão e especiarias. Encontra-se um pouco de tudo na Mercearia Souk, uma pequena loja no centro da vila. Jenny Duarte e o marido abriram este espaço no final de abril, apaixonados que são pelo artesanato marroquino e pelos produtos do norte de África, por isso também vendem cerâmicas, tagines e azulejos decorativos. Já na oficina de ourivesaria da professora e joalheira Nádia Torres, filha do reconhecido arqueólogo, fazem-se e vendem-se peças de autor, sobretudo em prata e bronze. Certos brincos, por exemplo, são inspirados naqueles que as mulheres de Mértola usavam no século XII, atribuindo-lhes significados sociais e poderes contra o mau olhado.

A oficina da Cooperativa de Tecelagem de Mértola promove a recuperação dos tecidos tradicionais da região. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

A tradição da tecelagem recuperada

A tradicional ocupação das mulheres tecerem peças de lã, utilizando máquinas artesanais de tear, começou a ser recuperada em 1987 com a formação da Cooperativa Oficina de Tecelagem de Mértola, visando o desenvolvimento local, e hoje é um dos motivos de visita à vila. No espaço, que funciona como oficina, museu e loja, explica-se como é o ciclo da lã desde que ela é retirada das ovelhas campaniças (a espécie mais comum no território) até que entra na máquina de tear e pode-se assistir ao trabalho de tecedeiras ao vivo. Sabe-se que na origem dos motivos decorativos das mantas alentejanas estão antigas tradições berberes. Além de mantas, com a lã faziam-se também coadeiros, tapetes, alforges, meias, gorros, xailes e echarpes. O linho era mais utilizado para fazer toalhas, naperons e vários tipos de panos.”

Roteiro originalmente publicado na revista Evasões de 25 de outubro de 2019. Os horários e outras informações podem ter sofrido alterações.

André Rosa
31/12/2020 em https://bit.ly/2YghDQI 

E quando isto tudo passar, havemos de lá voltar!

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